Entrevista: Múcio Furtado

Um mestre que se reconhece eterno aprendiz 

Ele é respeitado mundialmente por seu vasto conhecimento em queijos e todos os aspectos que envolvem a produção artesanal e industrial da iguaria 

Mestre queijeiro reconhecido dentro e fora do Brasil, Múcio Furtado é Ph.D. em queijos. Mas mestre, no caso dele, não se limita a um título acadêmico ou profissional. Adquire também conotações quase místicas, já que sua ligação com o queijo transcende a esfera profissional. Múcio é uma fonte abundante de conhecimento técnico, científico, cultural e artesanal sobre o queijo e a arte que envolve sua fabricação. 

Mas o queijeiro não é só aquele que faz o queijo. Trata-se de um universo muito amplo. Talvez, por isso, seja impossível enquadrar Múcio em uma única categoria: entre (muitas) outras coisas, ele é bioquímico, técnico de laticínios, professor, consultor, escritor e pesquisador. Tem centenas de artigos técnicos e científicos publicados em revistas especializadas, no Brasil e no exterior. 

Mineiro de Carrancas, Sul de Minas, Múcio é mundialmente respeitado no universo queijeiro, mas gosta mesmo é de estar com a mão na massa. Admite não gostar de reuniões empresariais, burocráticas e corporativas, apesar de nem sempre conseguir fugir delas.  

Também apaixonado por motos, Múcio bem poderia ser uma espécie de “easy rider” mineiro, guiado pela paixão inabalável pelo queijo. O semblante sereno e o jeito manso de falar não revelam, à primeira vista, sua natureza inquieta. Na Europa, pegou o espírito de fazer queijo com as mãos, o prazer de botar a mão na massa, literalmente. Nos EUA, teve contato com a parte científica e tecnológica da fabricação de queijos. 

São décadas de muito trabalho, estudo, pesquisa, vivência e prática. Entre suas várias atribuições, Múcio é especialista sênior em aplicação de apoio ao negócio de culturas e enzimas da IFF (International Flavors & Fragrances). Em março deste ano, em Wisconsin, nos EUA, foi juiz técnico – o único representando o Brasil – no World Championship Cheese Contest (Concurso Mundial de Queijos), ao lado de outros 50 juízes do mundo todo. 

Já publicou 13 livros, sendo o mais recente deles Receituário Brasileiro de Queijos, lançado em julho, na Minas Láctea. A escolha do nome receituário não foi por acaso. Segundo Múcio, tem a ver com o pensamento tradicional queijeiro. A palavra receita remete a coisas antigas, “como aquelas que víamos naqueles almanaques de antigamente.”  

No livro, o mestre fala de 50 tipos de queijo, inclui um histórico de cada um, as origens, a composição físico-química e uma descrição dos processos e dos pontos críticos. No entanto, é um livro que pode ser lido tanto por especialistas quanto por curiosos. E atende tanto ao público interessado no lado artesanal quanto no industrial. 

Com sua vocação para cidadão do mundo – e avesso a estrelismos – Múcio nunca perdeu suas raízes mineiras. Pelo contrário. Por onde passa, leva um pouco de sua acolhedora mineirice. Sempre com a simplicidade de um mestre que se reconhece eterno aprendiz. 

Nas palavras do próprio Múcio: “Voei e andei por vales e montanhas, vi muitos rios e cordilheiras, cruzei com homens, velhos e meninos, senti os odores do leite e dos queijos mais distintos e registrei na memória e no papel as impressões indeléveis de quem terá sido forasteiro por apenas um dia (…)” (Trecho da apresentação do livro Receituário Brasileiro de Queijos). 

O senhor é um dos maiores especialistas em queijos do mundo. Mesmo assim, mantém a humildade de um aprendiz, apesar de seu vasto conhecimento tanto teórico quanto prático. Como preserva esse “espírito de aprendiz”? 

Sinceramente, esse é meu jeito natural de ser, de me comportar. Viajo tanto pela América Latina lidando com queijeiros de várias nacionalidades e diferentes graus de experiência, com queijos muito variados. E constato que sempre aprendo algo novo com eles. Ao mesmo tempo, sigo lendo a literatura mundial científica especializada em queijos, e dentro desse espectro, do mais modesto queijeiro ao mais requintado cientista, eu percebo o quanto ainda tenho que aprender, melhorar. 

O brasileiro é apaixonado por queijo, mas o Brasil está em quinto lugar na produção de queijos. Acredita que há chances de subirmos nesse ranking, em um futuro próximo? 

Acredito que sim. Obviamente tem a ver com o poder aquisitivo da população. Mas já foi muito pior. Pouco a pouco ingressa mais gente nas classes que podem comprar queijos com maior frequência. Por um lado, aumenta a diversidade na oferta de tipos de queijos e, por outro, aumenta o interesse em consumir queijos, de forma direta ou indireta. Por “indireta” refiro-me aos queijos consumidos em sanduíches (como os da linha Prato), nas pizzas (Mussarela) e em saladas (como o Gorgonzola, Feta, Fior de Latte, etc.), e em pastas, (queijos ralados) que é o segmento mais importante. 

O senhor demonstra dois lados do amor pelo queijo: o artesanal e o técnico. A seu ver, a tecnologia, cada vez mais presente nos processos, faz o queijo ser “menos artesanal”? 

Meu segundo livro, publicado pela Editora Globo em 1990, se chama A arte e a ciência dos queijos. Esse título diz muito. Não acredito em sorte na fabricação de queijos, de forma continuada. Acredito na elaboração de queijos (envolve muita arte) e em sua fabricação (envolve muita tecnologia). Os italianos têm um ditado muito interessante sobre o reverenciado queijo Parmigiano Reggiano, ao dizerem que “non si fabbrica, si fá”, ou seja, “não se fabrica, se faz”.  O bom queijo, que tem padrões e mantém qualidade constante, resultada da combinação equilibrada de arte + ciência. Assim, o queijo artesanal realmente bom, verdadeiro, é o que se baseia nesse princípio. De nada adianta fazer um bom queijo hoje e ruim amanhã. Obviamente, a qualidade do leite tem grande importância. Aprecio muito as queijarias artesanais. Mas ainda são poucas as que, de fato, exercem de forma consciente a mistura arte + ciência e, sobretudo, ciência + paciência. Queijo tem que ser curado, bem curado mesmo. E isso exige muita paciência, que poucos queijeiros parecem ter. 

Quais queijos o senhor recomendaria para o consumidor que não entende de queijos, mas quer se aventurar nesse universo? 

Não me atrevo a falar em marcas. Mas para quem gosta de queijos mais fortes, eu recomendo um queijo Azul com 3 meses de cura, um Camembert com 50 dias, um Parmesão com 1 ano de maturação, um queijo do Reino com 4 meses, um Reblochon com 2 meses… Para os que apreciam queijos mais suaves, eu recomendo um queijo Suíço (Emmental), um bom Gouda, um bom Prato ou um queijo Minas Padrão. 

O estado de Minas Gerais é reconhecido como berço dos melhores queijos de fama nacional e internacional. Como começou essa fama? 

Em Minas, se instalaram os pioneiros de nossa indústria queijeira. Nos anos de 1890, se instalaram na região da Serra da Mantiqueira (Santos Dumont, Barbacena) os holandeses, como os Boeke, Kingma, Jong. Criaram o queijo do Reino, inspirado no Edam de sua terra natal, a Holanda. Nos anos 1920, vieram os dinamarqueses se instalar no Sul de Minas (Minduri, Aiuruoca, Carrancas, Cruzília, São Vicente de Minas, Seritinga), como os Nielsen, Godtfredsen, Norremose, Sorensen, Paulsen, Kjaer, Dinensen, Jensen etc.  e aqui lançaram os queijos Prato, Estepe, Gouda, Bola, etc. Além disso, Minas sempre foi um estado de forte vocação para a pecuária leiteira. No início do século XX falava-se até da política do “café com leite”, que se referia à alternância na Presidência do país de políticos de Minas e de São Paulo. 

Múcio entre duas de suas paixões: livro e queijo

A tecnologia contribui muito para a melhoria e a qualidade dos produtos, assim como para a padronização do produto final. Acha que ainda há muita resistência à tecnologia por parte dos pequenos laticínios? 

Não. Hoje o acesso à tecnologia se universalizou através da maior facilidade de comunicação, sobretudo com a adoção da internet e o alcance da televisão em todos os rincões do Brasil. Laticínios de pequeno porte necessitam dessas novas tecnologias, pois só sobrevivem se fugirem de queijos “commodities”, como a Mussarela, e se dedicarem a queijos de maior valor agregado, considerados “especialidades”. 

O senhor lida com empresas que trabalham com milhões de litros de leite por dia, e também com pequenos produtores artesanais, que produzem 20 ou 30 litros por dia. Como é transitar por universos queijeiros tão díspares? 

Para mim, não é difícil. Eu apenas mudo o linguajar para que este seja acessível tanto aos grandes fabricantes como aos pequenos produtores de queijos. Acredito que seja possível fazer excelentes queijos tanto em queijarias pequenas, com leite cru de boa qualidade, como também nas grandes fábricas, usando leite pasteurizado e bons fermentos láticos.  Eu não acho que o termo “artesanal” seja restrito a queijos feitos apenas com leite cru. Para mim, essa palavra fala muito mais da nobreza no fazer e no maturar, e também do tamanho da operação (que não pode ser muito grande, o que dificultaria a adoção de cuidados mais detalhados com os queijos). Sempre recomendo aos donos de queijarias artesanais que leiam muito, façam cursos bons e sérios, aprendam a trabalhar com os princípios das boas práticas de fabricação, que tenham muita, muita paciência mesmo. E que não temam utilizar leite termizado (eu o prefiro ao leite pasteurizado) na sua elaboração de queijos. 

Seu livro Receituário Brasileiro de Queijos foi lançado há pouco tempo. Mesmo com tantos livros publicados, para o senhor nunca falta assunto quando se trata de queijo. Já tem planos para um novo livro? Ou outros projetos? 

Tenho 13 livros publicados, sendo um deles em espanhol. Assunto parece não me faltar. Sou um mineiro curioso e inquieto. Gosto de escrever e tenho muita facilidade para organizar meus pensamentos e colocá-los no papel. Estou sempre atento às reais necessidades de informação dos queijeiros, e isso tem sido minha inspiração para novos livros. Além disso, por ter um bom trânsito no meio laticinista e queijeiro da América Latina, sempre acho empresários e amigos dispostos a patrocinar meus livros.  Ainda não pus o ponto final não. Penso bastante em escrever um livro sobre rendimento queijeiro e a aplicação da aritmética (prefiro essa palavra a dizer “matemática”) na fabricação de queijos (cálculos de rendimento, padronização, força de coagulantes, aquecimentos etc.). 

Ser queijeiro, mais que uma arte, cada vez mais é encarado como uma profissão, de fato. O que o senhor diria para quem deseja se tornar mestre queijeiro?  

É uma profissão muito compensadora, em que pese exigir muita dedicação e uma “eterna vigilância” nos processos e nos combates a contaminações etc. Técnicos queijeiros são muito valorizados e, em geral, os salários são muito bons. É necessário acompanhar de perto as mudanças e a evolução da tecnologia. Mas vale muito a pena e por isso não hesito em recomendar. Um bom começo seria fazer o curso do Instituto de Laticínios Candido Tostes, em Juiz de Fora, que é o berço mais tradicional da indústria queijeira brasileira e onde me formei também, com muito orgulho. 

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